Atendimento psicanalítico em tempos de Covid-19

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César Assis
Antropólogo e Psicanalista

Fomos todos tomados de assalto pela pandemia do novo coronavírus (covid-19). Nesse novo cenário, as atividades econômicas produtivas estão tendo que se adaptar. Com os consultórios de psicanálise não tem sido diferente. Para a manutenção dos atendimentos analíticos em curso e para o início de novos, cada vez mais necessários, psicanalistas estão tendo que redefinir os seus contratos com pacientes e lançar mãos de recursos tecnológicos que possibilitam a interação remota, e assim a manutenção do setting. Neste texto, quero analisar em linhas gerais o quadro que se desenhou nos atendimento psicanalíticos a partir da pandemia, tendo por base a minha experiência clínica pessoal e de alguns supervisionandos.

Para muitos psicanalistas que já realizavam alguma forma de atendimento remoto com ferramentas como Whatsapp, Skype ou Hangouts, a mudança atual foi bem mais fácil, ocorrendo somente um aumento no número de pacientes a ser atendidos por esses meios. Para outros, que anteriormente resistiam à possibilidade de uma configuração do setting com uso dessas tecnologias, essa forma de atendimento se impôs de maneira forçada, mas muitas vezes com uma surpreendente eficiência e de fácil adaptação.

O mesmo ocorre também do lado dos pacientes. Para alguns foi muito natural incluir suas sessões de análise exclusivamente no modo remoto, via tecnologia de vídeo e áudio, pois ou já faziam esporadicamente as sessões dessa forma, ou estão habituados a esse modelo de interação, em seus trabalhos ou trajetórias escolares. Contudo, para outros, a necessidade de ser atendido nessa modalidade tem se dado com bastante resistência. Há casos em que a presença de sintomas persecutórios – a suspeita de que pode ser ouvido em sua análise, por pessoas com as quais moram junto ou vizinhos – pode tornar inviável essa modalidade de atendimento. Outros simplesmente não suportam a comunicação por vídeo em tempo real. Além disso, a falta de acesso a uma internet de qualidade ou a impossibilidade real de privacidade impossibilita também o atendimento remoto.

Algumas adaptações têm sido necessárias em determinados casos. Para pacientes que possuem internet com baixa velocidade, uma solução é realizar os atendimentos somente por áudio, dispensando o vídeo. Nesses casos, pacientes que já estavam no divã possuem a vantagem de estarem acostumados a uma comunicação exclusivamente oral-auditiva. Em casos de pacientes com pouca privacidade, algumas alternativas também são possíveis. Alguns procuram lugares confiáveis fora de casa, como exemplo, na área comum do condomínio em que moram, praças, ou mesmo dentro do próprio carro. Outros lançam mão do estabelecimento de códigos secretos com o psicanalista para identificar certas pessoas de sua convivência, de modo a minimizar as consequências de uma escuta indesejada. Certos pacientes solicitaram uma mudança de horário para que a sessão fosse realizada estrategicamente no horário em que a pessoa com quem convive esteja ocupada em cursos, terapias ou cultos religiosos. Além disso, negociações geralmente precisam ser feitas na residência com as pessoas com quem moram, visando à ampliação da privacidade e à construção de espaços individuais confiáveis.

Se é verdade que todos estamos sendo afetados pela pandemia, é necessário considerar que cada um vivencia isso a sua maneira, como tem se refletido na queixa dos pacientes. Fazer ou não parte do chamado grupo de risco – maiores de 60 anos, diabéticos, hipertensos, entre outras comorbidades – possuir ou não parentes que estão dentro desse grupo e morar ou não com essas pessoas são fatores que fazem com que o vírus seja mais ou menos temido. Além disso, o sistema de crenças de cada paciente com relação à saúde, doença, morte e medo de contágio e o grau de afetação produzido por notícias vinculadas pela mídia são elementos que precisam ser considerados, pois resultam no modo como o paciente percebe o atual momento.

Do ponto de vista econômico e do trabalho, cada paciente também tem sido afetado de maneira específica: alguns já realizavam home office, outros começaram agora essa modalidade; alguns continuam trabalhando normalmente, outros já estão desempregados ou com redução de carga horário e/ou renda. Por fim, a própria política de isolamento social, de cuidado de si e do outro e de exposição aos riscos são elaboradas também num plano individual, consciente ou inconscientemente.

Grande parte da população está trabalhando em casa, ou está impedida de trabalhar. A vida social pública está extremamente restrita e a maioria dos locais que cada um costuma frequentar está fechada. Assim, o espaço físico em que a vida se desenrola passou a ser limitado em grande medida à casa. Aqueles que moram sozinhos possuem mais liberdade para o uso desse espaço, contudo, a solidão e a falta de contato físico (o toque do outro) são sentidas de maneira mais intensa. Morar com outros certamente garante um apoio e troca maiores, contudo, a convivência forçada o dia todo, ao longo dos dias da semana, tem gerado situações mais estressantes que demandam maior negociação, o que muitas vezes eclode em violência física e verbal. Além disso, morar junto sempre implica um risco de contaminar ou ser contaminado pelo outro, o que gera preocupação mútua. Disputas e ofensas sobre o grau de exposição ao risco de se contaminar passaram a entrar na economia dos afetos daqueles que convivem juntos.

A singularidade de cada sujeito também se expressa no modo como lidam com a angústia e frustração advindas das limitações que a situação pandêmica impõe. Nesse momento de crise, sintomas e mecanismos de defesa vêm para o primeiro plano, o que se apresenta de maneira contundente nas falas e queixas que preenchem o setting analítico. Pacientes com tendência ao pessimismo, melancolia e dramaticidade têm encontrado solo fértil diário para alimentar os seus sintomas. Pacientes com pouco espaço subjetivo individual estão bastante invadidos com os acontecimentos catastróficos externos, do plano coletivo, o que os tornam bastante reféns das notícias vinculadas pelas mídias. Pacientes com tendência à passividade estão altamente entediados, por não estarem bem aparelhados em criar de maneira ativa novas rotinas, restando para si a percepção diária de que nada acontece, nada muda. Pacientes com tendência à procrastinação se sentem autorizados a adiar tudo para quando a epidemia passar, encontrando farta justificativa para tal posição. Há também pacientes que negam a situação atual, seja o número de mortos, os riscos reais à saúde, os sintomas do coronavírus em si próprio ou em familiares, ou até mesmo criam uma política individual ilusória de isolamento, afirmando-se em quarentena, apesar de manterem diversas atividades sociais ativas.

Diante das notícias vinculadas sobre o estado da saúde pública na mídia, sintomas de coronavírus em si ou em pessoas próximas e queridas, internação e óbitos de pessoas conhecidas, incertezas na economia e política que têm acompanhado esse momento, os dias têm sido difíceis para todos. Nesse cenário, sentir tristeza, medo e angústia e ter um dia ou outro mais pesado são sinais de sanidade mental. Contudo, a única resposta a esse cenário não tem sido exclusivamente por meio de sintomas e mecanismos de defesa. Mesmo em momentos de crise e caos, a pulsão vida (Eros) costuma mostrar a sua insistência. Teorizada por Freud ([1920]2006) em oposição à pulsão de morte (Thanatos), a pulsão de vida é essa força que nos leva para frente, para o novo, para a criação de laços sociais, para as soluções criativas e para a persistência em recomeçar. Algo que tem ganhado expressão de muitas formas, seja nas doações, trocas, inovações e reconhecimento de que precisamos nos ajudar, pois estamos no mesmo barco, ou pelo menos na mesma tormenta.

Há um paradoxo, que também tem sido sentido pelos pacientes. Por um lado, parece que tudo mudou. Estamos confinados em casa, saindo o mínimo possível, geralmente somente para compras, trabalhando e passando o tempo de lazer também em casa. Ou seja, uma alteração profunda no modo como nos relacionamos com o exterior. Por outro lado, é como se nada tivesse mudado. A casa, o trabalho, a família, o casamento, o eu e os sintomas são os mesmos. Gostar ou não de cozinhar, ter ou não disposição para atividade física, por exemplo, são características que não se alteraram por encantamento no isolamento. O incremento do tempo, já que algum passou a sobrar – devido ao não deslocamento até o trabalho, à jornada reduzida, às férias forçadas, ou à diminuição da vida social e pública – é um fator que tem jogado luz na natureza da rotina e da vida cotidiana de cada sujeito. É como se a situação atual não tivesse levado de fato a uma mudança, mas dado o tempo livre num espaço físico limitado – fraturando a lógica da rotina de alguma forma – aumentou a possibilidade de se tomar mais consciência de quem se é e como é sua própria vida. O que certamente é vivenciado com angústia, sendo este um bom motor para o tratamento psicanalítico.

Nesse momento de crise, muitas ciências e saberes (a tecnologia da informação, a biomedicina, a biologia, a psicologia, a educação física, entre outras) têm ganhado visibilidade na mídia e importância em nossa vida cotidiana. Nunca psicólogos foram tão chamados a falar sobre a rotina necessária para garantir a saúde mental dos sujeitos, o que passou a ser propagado pela mídia: tirar o pijama, manter ao máximo certa rotina, estabelecer contatos virtuais constantes com amigos e familiares, equilibrar o tempo do trabalho e lazer, fazer atividade física regular, dedicar-se a um hobby, ter uma boa alimentação e bom sono. Ou seja, receitas que já são sabidas por todos, mas que se tornou necessário repetir.

A meu ver, a psicanálise diante dessa crise precisa continuar sendo esse local de escuta do desejo de cada sujeito. Ela é o continente necessário para que cada sujeito possa elaborar a seu modo esse momento tão difícil que está posto no plano coletivo e individual. Como é bem sabido, o norte de uma análise bem conduzida é o principio da realidade. A teorização de Freud desse conceito em oposição ao principio do prazer é bastante ilustrativa das necessidades do momento em que vivemos. O princípio do prazer é uma tendência do aparelho psíquico, o qual para se manter constante, deseja aliviar a tensão, buscando obter o prazer a qualquer custo, no momento imediato. Em verdade, é um método bastante primitivo de funcionamento, sendo ineficaz e perigoso para a autopreservação do organismo. Ele precisa ser substituído pelo princípio da realidade.

Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer” (Freud, [1920] 2006, pg. 20).

Por mais frustrante que possa ser entrar em contato com a realidade que nos assola, é somente nela e a partir dela que a vida pode ser vivida como local de potencialidades. Cada sujeito tem sido provado de muitas formas atualmente. Ele está tendo que lidar com o medo, a angústia, a frustração, a imposição de limites, a autoresponsabilidade, o adiamento de planos e satisfação, o urgente e impreterível cuidado consigo e com o outro. O setting analítico é um âmbito possível para a elaboração dessas demandas. Isto é, um local simbólico em que o sujeito pode ampliar o seu autoconhecimento e as suas possibilidades, e realizar uma definição do que é prioritário em sua vida. Com a intenção de que o paciente possa ir além dos mecanismos defesas e sintomas que o mantêm em um limite muito restrito.

 

Referência bibliográfica
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Pg. 13-75.

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