Entre mães e filhas Parte 2 – Visão Lacaniana

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Maria Luiza Baldi Ballon
Educadora em Saúde Pública e Psicanalista

Como vimos na primeira parte deste artigo, coube a Freud perceber a ligação arcaica da filha com a mãe, que precede o Complexo de Édipo vivenciado com o pai. Esta ligação com a mãe é chamada de fase pré-edípica que, além de deixar fixações duradouras, é uma relação marcada por sentimentos ambivalentes, que incluem expectativas e decepções.

Na visão de Jacques Lacan que reinventou a psicanálise a partir de um regresso crítico aos textos freudianos, enriquecido com a linguística de Saussure e a filosofia de Hegel, a mãe é uma devastação para a filha.

O desejo da mãe que se articula à castração materna, gera angústia – che vuoi? (o que você quer?) –, porém graças à metáfora, substitui esse enigma pelo Nome-do-Pai, gerando um efeito de significação.

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O desejo da mãe é isso (LACAN, 1969-1970, p.118).

A devastação seria um efeito da incidência de um gozo puro, não limitado pelo falo, sem contorno e estaria situado nesse desejo voraz e impossível de suportar, antes de ser metaforizado e apreendido pelo Nome do Pai.

A primeira menção de devastação no ensino de Lacan refere-se à relação mãe-filha.

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai — o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (LACAN, 1972, p.465).

A relação devastadora que pode existir entre mãe e filha fala da expectativa da filha de receber uma identificação feminina da mãe exatamente no ponto em que se coloca a impossibilidade de uma transmissão da feminilidade.

“A mulher não existe” é a fórmula que Lacan (1974-1975: 109) encontrou para sintetizar a impossibilidade de definir a essência feminina. Lacan atribuiu a inconsistência da mulher à falta de um significante para ela. Que a mulher não existe não significa que o lugar da mulher não exista de todo, pois que nesse lugar essencialmente vazio pode-se encontrar “alguma coisa”, segundo Miller (1988, p. 13) apud Zalcberg (2012, p. 470).

Essa “alguma coisa” que se encontra no vazio e que caracteriza a estrutura feminina justifica a conexão da mulher com os semblantes. A função do semblante, que do simbólico se dirige ao real, é mesmo de recobrir o nada (Lacan, 1972-1973).

Partindo da proposição de que a mulher quer ser “desejada e amada por aquilo que ela não é”, apresentando-se como o falo, para ser causa do desejo de um homem, Lacan (1958: 701) demonstra que os sexos não se relacionam diretamente e sim através do falo. O homem se coloca do lado da ostentação de ter, enquanto a mulher esconde sua falta (a ter) no ser o falo.

A segunda menção de devastação em Lacan se refere à demanda de amor de uma mulher endereçada a um homem. Segundo Lacan (1975-1976: 98) “… a mulher é um sintoma para um homem e um homem é pior que uma aflição e um sintoma para uma mulher – é mais uma devastação”. O homem e a mulher lidam de formas diferentes com a questão da não existência da relação sexual, cada qual exigindo algo de seu parceiro; o homem faz da mulher um objeto fetiche, um objeto a, causa do seu desejo, enquanto a mulher faz do homem um Outro que lhe fala.

A demanda de amor da mulher retorna a ela sob a forma de devastação. A devastação de uma mulher por uma decepção amorosa pode levá-la a dificuldades para sustentar um semblante de existência que faça barreira contra o gozo.

O que salva uma mulher da devastação é ela tornar-se um Outro para si própria.

 

Referências Bibliográficas

FERREIRA, Andrea Eulálio de Paula. “Trauma e devastação: a relação mãe-filha”. Almanaque On-Line. Revista eletrônica do IPSM – Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Ano 8 – nº 14 – Janeiro a Junho de 2014.

LACAN, J. (1969-1970). O Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, J. (1972-1973). O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, J. (1974-1975). Le séminaire, livre XXII: RSI.Ornicar?, 6,7-14.

NÁSIO, J. D. Lições sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

ZALCBERG, Malvine. “A devastação: uma singularidade feminina” Tempo psicanalítico – Revista eletrônica – vol.44 no.2. 469-475p. Rio de Janeiro dez/2012.

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